Uma cidade sem Bossa

terça-feira, 29 de janeiro de 2008


“João fala assim: ‘a Bossa Nova nasceu naquele bairro ali, no Angary. Ficava ali na infância e as ondas do rio chuaá, chuaá, junto com o som da lavadeira. Daí criei a batida tchaan-tchaan-tchaan e a Bossa Nova nasceu’”. No “M feio”, na orla de Juazeiro – Bahia, nos preparativos de mais uma noite de som ambiente, sentado, esperando uma porção de frango à passarinho, Mauricio Dias, Mauriçola, lembra que o criador do gênero musical que viria a revolucionar o modo de harmonização e de canto do samba brasileiro nasceu aqui, mas a Bossa Nova não. É fato. O espaço dedicado, hoje, à revolução musical não se distingue muito do tempo no qual João Gilberto, com 18 anos, deixou a cidade que não o entendia. As rádios de Juazeiro não dispõem de uma programação específica. E a preferência do público, que passa longe dos acordes complexos do violão do juazeirense, está mais para o pagode e a cultura de massa.
1958. A música brasileira vestia-se de terno e gravata e arrastava-se melosamente por suas dores amorosas. A mudança fazia-se necessária. O Brasil crescia no ritmo frenético da industrialização, saía do campo para chegar pertinho do céu nas cidades que se formavam verticalmente. Esse novo modo de vida pedia uma transformação cultural que se adequasse a ele. Foi então que o formalismo cadente das longas palavras cantadas e tocadas por um amor perdido começou a conhecer seu descompasso. O ritmo que se revestia em um lirismo europeu dava lugar ao samba reinventado pelos precursores do estilo musical que mais tarde simbolizaria mundialmente a identidade brasileira.
Segundo o livro Chega de Saudade, de Ruy Castro, a Bossa Nova, que em 2008 completa 50 anos, nasceu na zona sul carioca, em apartamentos da classe média de Copacabana. O ponto de encontro era a casa de Nara Leão, musa do movimento. Era uma juventude despreocupada, que vivia pela música. Não demorou para o novo ritmo ser taxado de elitista e antimusical. “A Bossa Nova encontrou muita resistência. O compositor de Seresta Moderna, por exemplo, cantava ‘seresta moderna, um gaiato sem voz, um samba sem graça, desafinado que só vendo’. E o gaiato era João Gilberto. Quando Tom Jobim compôs Desafinado ele logo disse ‘essa aí é minha’ e gravou’”, conta saudoso Antônio Leal, que fez parte do movimento em Juazeiro e Petrolina. A resposta às críticas vinha em forma de música.
Considerado o papa da Bossa Nova, João Gilberto nasceu em Juazeiro e foi embora cedo, incompreendido por sua introspecção e sua paixão pela música. “Eu lembro de João novinho, rapazinho. Ele ficava sentado na praça Simões Filho, tocando violão e a gente o chamava de abestalhado, a gente mangava dele”, diz seu Antônio. A cidade era muito pequena e conservadora e João Gilberto já tinha uma espécie de sensibilidade maior por ouvir Jazz e Blues, as maiores influências da Bossa Nova. Ele foi embora magoado, mas levou da cantoria das lavadeiras e seu ritmo descompassado às margens do Rio São Francisco, a inspiração e os elementos necessários para fazer sua revolução e deixou, ainda que timidamente, resquícios de seu dom.
Na década de 1960, em Juazeiro e Petrolina, a Bossa Nova, sobretudo por ter seu precursor nascido na região, influenciou os músicos locais da época e contribuiu para a formação de conjuntos que reproduziam o estilo. “No final dos anos 50, eu já ouvia a Bossa Nova aqui na rádio local”, lembra Mauriçola. Em 1963, Antônio Rodrigues, juntamente com Geraldo Azevedo e Edésio Santos, formaram os Sambossas, um dos primeiros conjuntos criados em homenagem ao novo ritmo. “Fazíamos shows de Bossa Nova, o show opinião, na 21 de setembro e chegamos até a tocar em Recife”, conta seu Antônio.
Atualmente, a cidade que reprimiu a genialidade de João Gilberto continua distante da harmonia da Bossa Nova. Segundo Sandro Costa, locutor da Rádio Transamérica, não há um espaço na programação destinado exclusivamente ao gênero. E a maioria da população fiel às FMs não parece sentir muita falta. “Não há como quantificar o número de pedidos de ouvinte em relação à Bossa Nova, porque eles são quase inexistentes”, explica Sandro. E nas outras emissoras não é diferente. “O povo gosta é de arrocha, Tayrone Cigano. E agora tem o creu. Creu! O povo não tem gosto”, diz indignado seu Antônio.
Outra questão que tem tirado o sono de quem ainda tenta manter viva a Bossa Nova em Juazeiro, é o fato de a cidade não ter entrado oficialmente no circuito de comemorações dos 50 anos do movimento. “O Rio de Janeiro decretou o ano internacional da Bossa Nova. São Paulo também. Em Nova Iorque muitos concertos acontecerão durante este ano. E na cidade onde nasceu o criador da Bossa Nova não vai acontecer nada!”, lamenta Mauriçola. O cantor diz esperançoso que tenta, em parceria com algumas empresas, realizar ainda este ano um grande show: “João Gilberto disse que vem, trazendo Bebel Gilberto, a filha dele, João Bosco e Caetano Veloso. Viriam fazer um show aqui e lá em Salvador”. E insiste que longe das comemorações Juazeiro não vai ficar. “Até mesmo o teatro João Gilberto não possui nada de João Gilberto. Não tem um acervo, não tem nada dele ali. Só o prédio”, indigna-se Mauriçola.
O jeito recatado e discreto de João Gilberto sempre despertou curiosidade e fez nascer ao seu redor inúmeras lendas. O cantor juazeirense Maurício Dias conta que apenas David, um fotógrafo americano, tinha a permissão para fotografá-lo enquanto trabalhava. “Ele não gosta do flash nem do barulhinho do click, diz que o incomoda, que tira a concentração. E só David fazia como ele desejava”.
Enquanto fazia um concerto nos Estados Unidos, João foi convidado a ir ao camarim para tirar foto com Fernando Henrique Cardoso, que na época tinha sido recém eleito presidente do Brasil pela segunda vez. Ele terminou o show e saiu escondido pelos fundos. “João disse que não queria aliar a imagem dele à do presidente. E simplesmente fugiu”, relata Maurício.


Inês Guimarães, Leônidas Vidal, Patricia Telles, Diego Alcântara (não integrante do OCO, mas oco)

5 comentários:

Fábio Maturano disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fábio Maturano disse...

Apesar de concordar com os que o chamavam de abestalhado nos idos dos anos 50, afinal de contas Seu João é uma malinha, o texto está muito bem construído e mostra a óbvia falta de competência da cidade em aproveitar o potencial que tem, seja no que for.

Desde que me entendo por gente,
Juazeiro é uma cidade sem Bossa, , sem criatividade sem perspectivas, sem pessoas interessadas em seu crescimento, e outros "sems".

É triste, mas não vejo como isso mudar num futuro próximo ou distante.

Anônimo disse...

Gostei muito do texto. Eu também fico perplexo ao ver que a cidade nao valoriza tal grandiosidade. E se voce conversar com algum maldito decadente, ainda vai achar q tem conhecimento sobre musica.. Sobre as radios nem as ouço, só os decadentes ouvem tais coisas, o carnaval foi uma porcaria ( o desse ano foi mil vezes mais). Enquanto isso eu escuto aqui em casa Baden Powell Vinicius, Joao gilberto e outros mais.. e tentando pegar no violao ! :P
abraços
Obs ( nao sou tao radical mas foi preciso)

Anônimo disse...

O que falta é iniciativa... tanto por parte da política da região que simplesmente ignora a cultura na cidade, quanto das pessoas que valorizam esse tipo de música. Parece que há uma bolha em torno da "elite cultural" da cidade, que se esconde em torno na má qualidade (não só) musical juazeirense.

Anônimo disse...

O nome do meu pai é Antonio José Rodrigues,O Toinho de Zé Maguim, como gosta de ser chamado e é mais conhecido no meio musical. Bom trabalho